sábado, 22 de abril de 2017

Sobre "13 Reasons Why", parte 2.

Bom, como prometido, continuo a reflexão a respeito da série "13 Reasons Why", agora tendo quase terminado a série, estou no 12° episódio. Confesso: a perspectiva de saber a forma como ela irá suicidar não me agrada, não só pelo que já ouvi (o fato de ser detalhado demais) , mas porque eu tenho um problema pessoal com "cortes", mas enfim... continuando a ver a série acredito que seja importante focar essa parte, que talvez seja a última, em pensar sobre a personagem, Hannah Baker.

Antes de começar a falar do personagem, creio que se faz necessário dizer porque continuo a escrever. Ouvi muitas opiniões sobre a série, muitas geraram boas conversas e como disse no texto anterior, a razão pela qual comecei a  escrever, mas uma razão em particular move este escrito: Eu não acredito que a série é algo sobre a qual não podemos falar sobre. Eu certamente não a recomendaria para alguém em dificuldades, mas dificilmente vejo razão para censura-la ou recomendar "não assistir" às pessoas, inclusive porque esse tipo de recomendação costuma ter o efeito contrário. Ao invés disso proponho outro caminho: Sejamos críticos, vamos analisar a construção do discurso e dos personagens;

O poder que a narrativa tem sobre a gente se dá porque ela cria pontos com os quais nos identificamos, personagens, certas formas de narrativa, a maneria de compor essa narrativa: a escolha das músicas, do uso da luz, o modo como os personagens são apresentados. Eu acredito que por observar mais atentamente a esses aspectos da série é que podemos tirar um pouco desse "poder sombrio" que estes textos que recomendam não assistir a série apontam. Inclusive, porque só se discutirmos a série e tivermos o cuidado de analisar como ela constrói sua narrativa é que poderemos criar pontes de dialogo com as pessoas que mais se sentiram identificados com essa personagem que é Hannah Baker, que possam se sentir identificados com a lógica do suicídio e refletirem isso na série. Então sim, se você por acaso esbarrou com este texto porque a série te acertou em cheio, eu faço um pedido - por favor, fique e leia até o final se puder. E se desejar, comente;

Hannah é um personagem complexo e aponta para a questão amarga que é o suicídio... Dizer simplesmente "suicídio não é uma alternativa" na tentativa de tapar o buraco que a série aponta é esquecer que do ponto de vista das pessoas que sentem-se como a personagem da série podem ver sim o suicídio como alternativa. Se não pudermos observar que essa noção pode fazer (e faz) sentido para muitas pessoas nos desconectamos delas, perdemos as poucas pontes de dialogo que podemos construir e essa, por mais ambivalente que seja, talvez seja uma das mais importantes para pessoas que consideram a possibilidade de prevenção do suicídio.

Existe algo que a série não aponta muito claramente, ela apresenta, mas de maneira tão sutil, de tal forma que outros aspectos acabam tomando uma grande parte das "luzes" e esses aspectos são os que as pessoas mais facilmente identificam, como por exemplo "como as pessoas são escrotas", ou "ensino médio é uma bosta" ou  a "sociedade é uma merda", mas.... cá pra nós... essa é a parte mais superficial e provavelmente a menos importante que a série aponta... 

Gostaria de apontar para esse sutil aspecto construído em torno de Hannah e construído também ao redor de Clay, que é a raiva. A revolta de Clay, e também a de Hannah, parecem a primeira vista se voltar contra o mundo. Um mundo cruel e nada empático, que os força a lidar com situações que não lhes cabem, essa impressão mais imediata nos leva a essas conclusões mais superficiais que falei acima e elas perdem de vista a sutileza que existe nessa revolta: Ela é , no fim, uma revolta contra si mesma. Uma raiva que se volta ao próprio individuo e não pode ser construída em relação ao mundo externo, sem ser construída também de maneria interna - Hannah se coloca em sua própria lista, e se vê, como as pessoas que aponta, para além de redenção ou igualmente responsável na construção de sua morte, isso é poderoso, e ao mesmo tempo, muito comum, ao ponto que é muito difícil ver a série e não nos perguntamos sobre nossa conduta, não partilharmos em alguma medida dessa revolta/raiva/dor e não sentirmos um pouco disso em relação a nós mesmos... não?

Tenho a crença que não há nada que possamos sentir em relação ao mundo (raiva ou revolta, ou tristeza) que não impomos a nós mesmo com a mesma intensidade ou até mais. Porque possivelmente, qualquer fracasso do mundo, é, de algum modo nosso fracasso. Tendemos (ou as vezes até precisamos) ver assim, porque tal culpabilidade nos coloca no lugar onde podemos imaginar ter poder sobre certas situações, como Clay, quando começa a se questionar se matou ou não Hannah Baker, como Hannah, tanto nas situações a qual foi sujeita, tanto das situações que testemunhou, e fazemos isso a todo momento.  Encarar a alternativa em que não temos um "agir possível", seria diminuir nosso poder em relação a situações que consideramos revoltantes, não atribuir uma certa culpabilidade, tira do nosso alcance de visão nossa imaginação sobre esse "agir possível" para essas situações e as vezes não damos conta disso... e isso em alguma medida, é o que acontece com Hannah.

Por isso peço que retornem a essa personagem com uma outra possibilidade de olhar, sei que muitos partilharam da revolta dela, não vou dizer que esse sentimento não passou por mim, está aqui ainda, é uma das razões pra escrever. Mas não pensar apenas sobre essa revolta contra o mundo, perceber o quanto ela também é construtora de uma culpa interna, acho que isso não podemos perder de vista, porque é isso que da nexo a construção da ideia do suicídio para Hannah, a construção de si própria como alguém indesejável , alguém que fracassou, alguém tão responsável por toda aquela merda quanto os outros...

A construção dessa angustia para Hannah é algo que parece ser estabelecido antes da série: desde o começo de sua narrativa ela já se constrói de maneira negativa. Podemos pensar que talvez na experiência atual da personagem, talvez ela não se enxergasse da forma como as fitas a apresentam, e talvez as fitas a constroem de maneira negativa desde o primeiro episódio porque são fitas narradas pela pessoa que não enxerga em si mais nada que a possa manter viva. De uma forma ou de outra, não conseguimos ver como essa angustia começa, vemos sinas, podemos assumir várias coisas, mas tudo fica no campo da hipótese, ela vive coisas muito ruins, mas há algo que precede - uma depressão talvez? Qual seria seu passado antes de se mudar para aquela cidade (que aparentemente não tem nome...)?

Há algo que esses textos que previnem para não ver a série que talvez seja importante de ser observado. Não tratar a "depressão" da personagem, ou o que quer que ela tenha , de maneira mais direta, incomodou muita gente. Evidente que está ali, novamente de maneira sútil e obfuscado pela palavra "bullying" ou pela escrotidão da turma envolvida com as fitas... a série pode não explorar esse aspecto de maneira mais obvia ou direta mas não significa que nós espectadores não podemos observar, a série trata da tristeza/angústia de Hannah, mas a constrói de maneira direta: através da narrativa de quem está na situação de dor/angustia, através de como ela própria constrói o nexo de seu suicídio. Isso dá margem para entender que a série não dá uma alternativa ao suicídio, mas me pergunto se a série tem que fazer isso, e em segundo lugar, qual é o nosso lugar enquanto espectador, vamos só aceitar o que a narradora (Hannah) constrói sem observar o lugar de onde fala?

Se tomarmos tudo o que Hannah diz ao pé da letra, acho que perdemos o ponto. Hanna narra para si mesma o nexo do seu suicídio, de uma certa maneira, ela gravou as fitas para si mesma. Uma forma de organizar a experiência, de compreende-la que daria sentido inclusive ao "depois", que teria um acerto após sua morte, ou pelo menos uma tentativa, uma esperança que ela não poderia ver cumprida uma vez que não estaria viva, mas a lógica é bem elaborada, e talvez necessária para que ela seja capaz de efetivar sua decisão.

Se pudermos enxergar isso, creio que enriquecemos o universo que a série apresenta, enriquecemos a própria personagem. Hannah parece possuir uma tristeza anterior, ou no mínimo um sentimento ruim contra ela própria - isso aparece nos primeiros episódios - a insegurança diante da nova escola, a vergonha diante da situação apresentada no primeiro episódio, a vergonha diante de Clay , inclusive há uma culpabilidade implícita, embora a fita aponte para Justin, ela também aponta para a própria  Hannah; E assim se dá em quase todas as outras fitas, em quase todas ela, quase como se houvesse uma pergunta escondida da personagem: "Poderia eu ter feito algo diferente? Teria isso mudado alguma coisa?"

Nesse sentido, Hannah se questiona o tempo todo, o próprio comportamento e sua "culpa" nessas histórias, a personagem possui essa raiva, ou angustia, de si, que muito bem se traduz na fita de Clay quando ela diz: "Eu te arruinaria", e é nesse lugar que ela precisa ser observada, não como uma voz onisciente sobre os fatos, não como uma verdade única ou ultima sobre o que aconteceu, uma verdade para ela própria certamente, como disse, acredito na possibilidade que o exercício de criar as 13 fitas era fundamental para que ela pudesse ter força para escolher, centrais na criação de uma lógica que fundamenta a ação de tirar a própria vida. 


E talvez a critica de que a série não apresenta "uma alternativa" para o suicídio, perde o ponto: não é sobre isso a série, a série não tem esse objetivo redentor, ela é uma narrativa sobre uma pessoa que narra - quase como se estivesse tecendo - o nexo do próprio suicídio, é de se esperar que Hannah não visse para si mesma outra alternativa, romper com isso quebraria a coerência da série. E sinceramente, acho que a série não tem que ser "band-aid" pra essa nossa necessidade de alternativa. Se a série apresentasse uma alternativa, romperia com toda a lógica criada desde o nome e durante todo seu desenvolvimento,  e em que medida não perderia seu alcance? Em que medida não deixaria de dizer às pessoas que enxergam sentido na lógica do suicídio?

E eu creio que é importante alcançar as pessoas para quem essa lógica faz sentido. Por que creio que pessoas que começam a ver sentido nessa lógica perdem pontes de dialogo com outras pessoas, se veem separadas de uma maneira tão fundamental e abismal, que encontrar com algo que alcance, talvez, possa permitir uma abertura.

E sobretudo, acho que é dentro dessa crueza que talvez precisemos olhar o problema: com a clareza de que para algumas pessoas, faz sentido esse desejo. Não podemos ignorar isso com frases de efeito atribuindo um valor inerente a vida quando existem pessoas, e aparentemente muitas, que não dão isso por garantido... aliás.. quantos de nós conseguem dar por garantido o valor da vida? Quantos sabem ou possuem força de crença capaz de sustentar isso como essa universalidade? Crença no valor da vida é uma construção e pode ser fragilizada ou destruída conforme nossas experiências... e aí, como lidar com isso?

Eu escrevo porque recomendar as pessoas que não vejam, não basta mais. A série vingou, está sendo assistida e discutida por muita gente, diz respeito a experiência de muita gente, não adianta mais insistirmos em recomendações para não ver. Precisamos ter uma posição que nos permita ser capazes de dialogar com as tantas pessoas que estão entrando em contato com a série em tantas realidades emocionais diferentes.

Agora...  eu recomendaria a série para algum amigo em dificuldade ou para pessoas que já encararam o suicídio como possibilidade? Dificilmente, mas não recomendaria muitas coisas na real... Acho que o que eu realmente não recomendaria seria "Dogville" mas isso é conversa pra outro texto... Eu não recomendaria a série porque eu iria preferir chamar a pessoa pra conversar ou tomar um café, não por causa da série em si, mas porque ao meu ver, nesse tipo de situação, o mais fundamental não é tanto a respeito do que eu quero ou não levar para os outros, mas o que eu posso ouvir... e se eventualmente viesse a tona a questão sobre a série, talvez seja mais importante ver, e saber do que se trata, do que fechar...

Bom, para finalizar, eu tenho esperança/impressão de que esse texto vai esbarrar em alguém que entrou em contato com a série e não tá legal...

- Eu não presumo saber quer que tenha passado, qual realidade de seus sentimentos, é difícil falar do coração dos outros, vastos como são. Não pretendo também dizer que "vai ficar tudo bem" porque eu realmente não sei, mas, eu sinceramente gostaria... mas fundamentalmente, eu gostaria que soubesse que, embora nós consigamos realmente nos sentir separados do nosso entorno, de forma que isso as vezes parece que vai nos partir em mil pedaços, ou como se estivéssemos num abismo tão fundo que nosso grito mais angustiado não poderia ser ouvido.. acredito que nossa mente nos prega peças... que talvez seja importante não dar por garantido esses sentimentos... nos permitir outras possibilidades de sentir o mundo, que as vezes não são familiares, não são nossas... e aceitar o fato de que tentar não é uma garantia de que novas amarguras não virão, ou que velhas angustias não poderão retornar... mas, ao menos, uma possibilidade, de nós mesmos, nos dar uma chance, apesar da angustia, apesar da dor... se for possível...





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