domingo, 18 de novembro de 2018

Por sorte a dor chegou...

Eu tenho uma crença roubada de parábolas Taoístas que li em todo tipo de lugar: Tudo aquilo que flui através de nós é um Rio. E hoje, nesses tempos, tenho sido convidado a olhar um que nunca observei...

Ele estava escondido, por trás de uma represa que se chamava "Mal Hábito" - Os lanches de madrugada, o gosto pela fritura, a falta de hora e o desequilíbrio da alimentação - as águas que Mal Hábito represava são fétidas, cor de sangue e fezes, com pequenos cristais flutuando sobre ele... As paredes do Mal Hábito se romperam, o Rio flui dolorosamente pelo meu corpo, tornando tudo difícil de fazer... ouvir uma música, andar, comer, respirar, conversar com as pessoas que gosto... nesse momento estou diante desse Rio, que represado por tanto tempo, que com tanto descuido, vem com uma força aterradora. O Rio flui e o que carrega diz muito... mostra o que era ignorado e não pode mais ser...

Para alguém que se orgulha demais da relação que tem com o próprio corpo, a dor revela uma dura verdade - da fragilidade de minha atenção, a contradição dessa autoimagem. E nesses momentos de dor tão intensa da pra sentir porque para os Budistas a Atenção é uma das perfeições necessárias à cessação do sofrimento...

Fui por muito tempo apenas do pescoço pra cima, eu era a minha língua e meu apreço pelo gosto e a fala, era minha visão e meus ouvidos e minha mente, depois acrescentei braços e pernas e depois a pele, mas nunca para além dela. Nunca tão fundo, nunca nos órgãos... Sempre os evitei, fosse no meu medo de sangue, cortes, perfurações, ou no meu medo de hospital... Minha vontade de não lidar, de ser apenas esses pedaços que escolhi...

Agora, a dor não me permite não perceber... ela é algo curioso, não é o problema, apesar de muitas vezes ser tratada como se fosse. Se precisar ser de fato sincero com um médico e ele me perguntar "Qual é o seu problema?" minha resposta deveria ser: "Eu nunca prestei atenção no que comia, quando comia, como comia, nunca liguei muito pro que tenho por dentro, não encarava como parte de mim...."
Essa ontem é a nascente do Rio, a dor é o som de suas águas no hoje.

Agora está adoecido, estou... Dor é grito. É um pedido urgente por atenção, um aviso sobre a necessidade do cuidado. Coloca em sua intensidade o limite e me força a pesar sobre o quanto eu valorizo o prazer do gosto em relação ao cuidado comigo mesmo.. Que me coloca a parte daquilo que não percebia de fato ser parte de mim....

Enfim, em dor escrevo, por uma espécie de desespero, um tipo estranho de confissão e pedido de desculpas ao que eu ignorava em mim, pelo meu apego ao gosto...

Por sorte, a dor chegou, também pra não deixar ser muito tarde.


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