sábado, 17 de março de 2012

Para jantar com os monstros...

Selo uma carta para cada um deles, um convite formal, enviado para os quatro cantos.
O jantar seria dado em minha casa, com toda pompa que poderia reservar a estes ilustres convidados. Serviria a eles muito bem passados , ou mal passados, a depender do gosto de cada um.
O primeiro a chegar, seria uma criança de oito anos, cabelo cortado em cuia, chorosa, com olhos muito avermelhados, estaria usando uma camisa um pouco curta, para dentro de uma bermuda também não muito grande, deixando exposta as varias feridas na perna, feridas que eventualmente ele insistiria em coçar, em comer seus pedaços e beber de seu sangue, apesar de todas as iguarias à mesa, eu tremeria diante de sua presença.
Os segundos a chegar seriam meu pai e minha mãe, feridos, andariam mancos pela casa, observando e criticando cada móvel, lançando olhares para mim, brigariam antes da janta começar, apesar dos lugares separados que eu havia deixado para eles na mesa.
Os terceiros também viram juntos, meus irmãos, de mãos dadas, ririam para mim, com suas roupas manchadas com respingos de sangue, incautamente causados quando deixarei um pouco dos mal passados cairem no prato, apesar de todo cuidado e alegria de servi-los. Eles ririam do sangue, sentariam entre meu pai e minha mãe, seus olhos, seriam os meus olhos.
E em meio ao jantar, eu iniciaria um longo discurso, sobre o motivo pelo qual os havia reunido ali, jantaríamos todos os pedaços de nossos passados, pedaços de mim passados. E nunca havia me passado pela cabeça o quanto seria um jantar antropofágico.
Minha barba estaria toda vermelha, meu rosto lambuzado, minhas vestes sujas. Eu desabaria - desabo - a chorar diante deles, dos convidados, que se transformavam em cada pessoa que eu conheço, que se transformariam inclusive nas pessoas que ainda não conheci. E eu me levantaria assustado, em outra crise de ansiedade, vomitaria-me diante deles, maus pedaços de mim, e os olharia com olhos de culpa, meus dentes seriam serrilhados, minhas unhas longas demais. Todos eles se deformariam diante de minhas deformidades, se formariam.
De frente para mim mesmo...
Jantava a frente de um espelho, o prato, estava vazio, a muito , passado.
E meu convidado, ali refletido, me olharia com espanto, assim como eu...



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Um comentário:

Olga disse...

Falei pelo Facebook e repito aqui: Acho seu texto digno!Tensas são nossas tentativas de esconder nossos medos, nossos traumas, nossas verdades. Que nos fazem ficar girando em círculo por não querer chegar a lugar nenhum além daquele onde estamos.