domingo, 29 de janeiro de 2012

Sobre mídia e náuseas.

Meus pais assistem tevê, o programa, não sei qual o nome, de uma das grandes emissoras de nosso país, está a testar o "cidadão comum brasileiro".
A "brincadeira", "teste", "pesquisa" começa com uma grande introdução sobre a tolerância dos "brasileiros" à desonestidades como alterar taxímetros, ficar com troco a mais ou dar troco a menos. E o programa se propõe a testar a "honestidade" desse tal "cidadão comum brasileiro".
A câmera escondida testa a honestidade dos cidadãos desavisados que estão ali a fazer suas compras... Uns não percebem e saem, outros voltam e usam o dinheiro, ou aparentemente percebem mas não dizem nada. Outros percebem na hora e devolvem. Uns quando abordados pelo repórter voltam e devolvem, outros não, desconversam e saem.

O juízo moral se expressa em cada centimetro do programa, e meus pais e irmãos dão risadas dos desonestos que alegam não ter percebido, ou ficam desconcertados com a abordagem do reporter. O programa e a minha família da vivas aos que devolvem, oh, os poucos honestos de nosso decadente país! Que tristeza...
E num único close da vida daquelas pessoas descobrimos magicamente através da telinha da televisão a desonestidade que se encrua por debaixo de suas unhas sujas desse tal cidadão de bem...
Espectadores e repórteres transformados em juízes da honestidade alheia. Sempre atemos a criticar e a criar frases de efeito como "distração ou má fé°".
Cidadãos recortados em um pequeno momento de suas vidas, independentemente de seus trajetos históricos, de sua formação, ou do seu humor naquele dia infeliz, são expostos à publico. Uns louvados pelo seu gesto honesto, outros condenados. Diante de si, diante dos espectadores.
E câmeras escondidas, muitas câmeras escondidas...

Engraçado é pensar, que todos esses espectadores e ditos reporteres, são tão mortais e sujeitos à situações tão prosaicas quanto aos que expõem... Cultua-se uma moralidade ideal, o tipo de brasileiro cidadão de bem que faria esse pais ir para frente...

Mas a moralidade da mídia... é coisa de televisão.

A vigilância se tornou o hobby do século XXI e o medo, sua nova religião.

E nossas vozes ficam engasgadas em palavras como "segurança" e "combater a corrupção, o crime, o trafico, a vadiagem, etc...".
Julgamos convenientemente das nossas poltronas todos os "vis criminosos" que aparecem nas telinhas da TV, todas as vidas alheias as nossas, que na maioria das vezes que olhamos pra telinha, não tem nada a ver com a nossa.

Uma mídia para classe média. Para uma cultura que aprende a cada dia a santificar a classe média, porque afinal de contas "classemediasofre" dizem por aí. Propagandas de shoppings, carros, livros, empréstimos maravilhosos, bancos ,seguros... Perfumes, camisas, sapatos... E um jornalismo fundado no medo... taxas de criminalidade, testes de honestidade, cameras escondidas, programas policiais, reportagens sobre psicopatas e mapas de zonas de perigo. Tragédias familiares - geralmente da classe média - tragédias sociais - dificilmente da classe média. Um pseudo-formalismo, uma educação, tudo muito limpinho muito certinho - um modo de vida muito branco, muito claro - de dar náuseas!

Sem sal porque faz mal pro coração e sem açúcar porque engorda.
Uma cultura de tédio e analgesia. Que faz da extensão da vida um valor por si próprio...
Que não se experimenta, que não se pode ser por si só...

Que propõe um modo de vida correto da qual a maior parte do país não pode compartilhar...
Mas vive sobre o terrível julgamento do padrão social. Não só dos programas babacas de televisão, mas como incorporamos essa cultura de vigilância às nossas vidas...

Como nos pensamos e nos sentimos a partir desses modelos em que somos educados,
nossas opressões introjetadas... Que tentam nos dizer como é ser correto no mundo.

E não meus caros, felizmente, Nunca encaixaremos! Seremos sempre os tortos, os errados na vida, sujos, feios e suados. Distantes demais dessa amenidade, levados pelos fluxos de nossas conturbadas vidas, apenas somos. Humanos! Contraditórios, incoerentes, inapreensíveis pela razão... Maus alunos.

Mas a zelosa mestra TV está ali sempre, para nos ensinar, o membro mais sagaz da família. Sentados no nosso devido lugar. Espectadores, espectando. Ouvindo o que deve ser ouvido, vendo o que deve ser visto...

Assim eu brindo... à desorganização, e à desobediência. Que o autoritarismo nas nossas vidas, já começa na frente da telinha, ainda mamando no peito.

Com nossos pais se pensando enquanto protagonistas de novela...


"A televisão /2
A televisão mostra o que acontece?

Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.

A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Por que a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem,
o sistema promete uma boa poltrona."

Eduardo Galeano




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